A última manhã de sábado de agosto


(Marcus Ottoni – jornalista)
  Eu até pensei em escrever um artigo mais leve, tipo aqueles que falam de manhãs ensolaradas, café forte cheirando na cozinha, cuscuz com ovos mexidos mal passados, descompostura visual, cabelo desalinhado, cara de sono e preguiça grande por todo o corpo... Vontade de ficar estirado na cama envolvido com o sonho que me levou até o grande amor que um dia perdi e nunca mais consegui recuperar ou encontrar outro que substituísse aquele que adormeceu em meu coração eternamente.
  Pensei e pensei... Alinhavei as palavras, uma a uma, tentando usar o mesmo critério dos escritores renomados que buscam as mais simples palavras para traduzir grandes sentimentos. Analisei cada uma na construção das frases desse artigo bucólico talvez, mas cheio de aroma de manhã de sábado na beira mar. E durante alguns minutos me vi como um arquiteto desenhando um texto com saboridade de “picolé de espumoni” do Bar do Galo e sonoridade de canção mineira do “Clube da Esquina” na voz de Bituca e Fernando Brant.
  Palavra por palavra, frase por frase, parágrafo por parágrafo, ia eu alimentando minha crônica nessa manhã de sábado, diga-se de passagem, o último de agosto, cujo doce gosto de nostalgia está sob o comando dos leoninos, onde minha lua cósmica se coloca desde o século passado, lá pelos idos de 1954, quando dei as caras ao mundo. Mas virá setembro e espero que antes mesmo que ele chegue eu termine o artigo em questão.
  O sol, que sutilmente penetra pela janela entre aberta é meu cúmplice nessa empreitada literária e solitária. Vejo-o tentando espiar meu escrito, esticando seu raio luminoso até a folha em branco que está posta sobre o colchão mas que não tem utilidade alguma porque o texto vem sendo construído em minha mente, secretamente. Acho mesmo que tanto o sol, como o gato que ronrona sonolento aos meus pés saberão o que escrevo e porque escrevo o que escrevo nessa manhã de agosto.
  Voltando ao texto que construo na mente, tento recriar o sono que me acomodou na noite e nele fazer valer o que mais quero: adormecer novamente. Porque é adormecido que fazemos as coisas acontecerem como queremos. Mesmo nos mais perigosos sonhos nunca nos perdemos de nós mesmos e sempre estamos a salvo em nossas vidas. Até porque não existe vida nos sonhos, apenas sonhos em nossa vida. 
  E vou eu percorrendo a memória confrontando-a com a realidade. Dura realidade que não perdoa e castiga todo aquele que um dia zombou de si mesmo e debochou de seu querer como a querer provar que tudo podia e nada temia, nem mesmo as perdas que acumulamos vida à fora. Mas o café forte produz um forte aroma que invade a casa e estimula os neurônios ainda no embalo da preguiça matinal. Abre mais o apetite do que a vontade de sair da cama e viver o dia que se anuncia pela janela do quarto.
  Como fome que consome não permite “embromeichon”, não tenho outra alternativa que não seja desistir do artigo e me deixar vencido pelos cheiros que me chegam da cozinha. São fabulosos todos eles. São divinais porque são alquímicos em essência. São alucinógenos porque geram fantasias gastronômicas. São reais porque geram necessidades e produzem energia para novas necessidades e carências humanas. Assim, derrotado pelos aromas da refeição matinal, chego vencido na cozinha e me deixo jogado na degustação dessas maravilhosas iguarias. 
  O artigo? Quem sabe escrevo amanhã quando acordar no último domingo de agosto.


Comentários

  1. Maravilhoso o texto Camarada, o que é natural vindo de você. Mas, permita-me discordar de sua extraordinária peça literária em dois pontos. No primeiro, mais de uma vez. Discordo quando diz que ”não existe vida nos sonhos”, acredito que a partir deles podemos imaginar e realizar mudanças nos nossos projetos de vida, bem como recuperar ações e tomar de deveríamos ter tomado lá atrás e não o fizemos. O camarada Niemeyer dizia: A gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem. Já o camarada Lênin costumava dizer que: “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles”. Daí, podemos entender a relação inseparável, quase visceral da vida com o sonho. A partir dele podemos construir nossa vida.
    Por tudo isso, a parte que diz “só há sonhos em nossa vida” também tem minha discordância.
    Voltando a citar o mestre e camarada Niemeyer, ele dizia que a gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem. Então, vamos sonhar e fazer acontecer, a final de contas, voltando ao Oscar: “A vida é um sopro”.
    Um Beijo e Saudações Socialistas!

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