Crônica da quinta-feira

(Marcus Ottoni – jornalista)
  Quando nasci, lá pelos idos de 1954, um anjo pirado, desses que vivem com a cabeça cheia de bagulho, me disse assim que respirei pela primeira vez na vida: vou sacanear tua existência. Sussurrou ele ao meu ouvido com um silvo celestial. Na ocasião não entendi bem, mas achei que sacanagem era uma coisa boa e, na minha inocência de recém-nascido, até agradeci o tal anjo caído sem ao menos saber falar ou emitir sons de qualquer tom.
  E assim minha vida foi seguindo seu rumo sem o destino que nunca tive e que sempre persegui sem saber o que estava procurando e porque procurava algo que nem sabia o que era. Mas segui na trilha da sacanagem angelical daquele anjo que nem sequer tenho lembrança de como era ele. E fui em frente com a ansiedade daqueles que vão ser sacaneados por quem não se sabe quem e quando e como. 
 Mas em toda minha trajetória, nesses mais de 60 anos, sempre ouvi uma voz se manifestando dentro de mim nos momentos em que estive em situações desfavoráveis cujas decisões eram necessárias e determinaram o rumo que minha vida tomou naqueles momentos. Muitos, ou na verdade, quase todos eles tiveram consequências que me levaram a viver no limite do permitido sem direito a retoques ou revisão das decisões. Mas fui levando e carregando comigo a sina de ter como anjo da guarda um anjo decaído sempre disposto a sacanear minha existência.
  Confesso que em algumas situações consegui inverter as posições e de sacaneado passei a sacaneador do anjo caidaço. Mas geralmente a rebordosa pela ousadia de inverter a sacanagem era maior do que a própria noção da sacanagem existencial que eu tinha. Desta forma, eu o sacaneava e ele potencializava a sacanagem de volta sobre mim. Sempre levei a pior embora em alguns momentos parecesse que eu estava por “cima da carne seca” e o tal anjo caído tinha “engolido corda” e passado batido. Mera ilusão.
  Assim fomos, eu e o anjo pirado, ladeados pela sacanagem proposta por ele quando nasci, caminhando pela vida. Ora sacaneado, ora abençoado. Era a dicotomia angelical e o sobe e desce da minha vida que ia sendo construída, não com idas e vindas, mas com a capoeiragem de um anjo que mal sabia as manhas da arte negreira, mas que se fazia mestre nos golpes que aplicava me tornando espectador e vítima de um jogo que nunca consegui entender e, muito menos, aprender suas regras tão fora de propósito para quem achou que nasceu para brilhar e não para apanhar ou ser sacaneado por um anjo pirado.
 Mas a vida seguiu seu curso com a turbulência de uma sacanagem angelical bem articulada ainda quando se construía meu ser no útero de minha mãe.  Acredito até que o tal anjo, que me acompanha e sacaneia há décadas, com raras e honrosas exceções registradas em dias de ressaca do anjo após noites de farras celestiais homéricas com outros anjos que devem sacanear outras pessoas mundo afora, não tenha como objetivo de sua artimanha pecaminosa celestial contra mim, me levar ao inferno com passagem punitiva pelo purgatório sem qualquer direito a recurso junto ao magistrado supremo.
  Então, cá estou eu e o anjo piradaço, olhando o tempo que corre em direção a algum lugar que não tenho a menor ideia de onde seja e o que me espera quando lá chegar. Também não sei se o tal anjo estará comigo quando lá chegar. Sei, isto sim, eu sei e tenho plena convicção, de que a sacanagem do anjo pirado não acabará até eu me acabar como ser humano. 
  Aí, nada mais importará, nem mesmo ser sacaneado por um anjo pirado que deve viver com a cabeça cheia de bagulho de boa qualidade e com uma euforia infinita por esculhambar com a minha vida, o que para ele deve ser o maior prazer que um anjo pirado pode sentir como guarda costa de um mortal. Algo como um orgasmo múltiplo e contínuo ao longo de todas essas décadas de sacanagem explícita sobre mim.
  Desse jeito, acho que terminarei minha vida ao lado desse anjo e totalmente conformado com o destino que ele traçou para mim. E levarei para a eternidade a inconfundível alcunha de “complicado”. Não porque o seja mesmo, mas porque é vontade do tal anjo pirado que me pegou para Cristo tão logo abri o olho depois de levar um tapa na bunda dado por um médico esquisito que me olhava com olhos arregalados quando me tirou de dentro da minha mãe. 
  Talvez, quem sabe, ele estivesse vendo o anjo pirado aboletado por sobre meu ombro, de ponta cabeça, desfrutando um “xara” de bagulho cultivado em nuvens bem encharcadas com lampejos de sol de verão aquecendo a produção... nos primeiros dias da primavera latina americana.


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